PROVAS CONCRETAS
Paulo voltou da
cidade trazendo duas garrafas de cerveja na mão, e com um solavanco na maçaneta
abriu a porta do inferno.
Diante de seus
olhos André, seu melhor amigo, segurava uma arma entre as mãos. Tentando
aparentar frieza, mantinha todo o corpo tenso, mas o suor no rosto e suas mãos
trêmulas denunciavam seu estado.
Por um instante,
Paulo imaginou uma brincadeira sem graça, só por um instante, pois antes que
pudesse se mexer, André falou:
- Entra logo,
canalha.
Sua voz, que
tentava impor segurança, na verdade era a prova mais clara de que André lutava
para controlar suas emoções.
Ele devia estar
bêbado, drogado ou as duas coisas, pensou Paulo, enquanto a arma se movia
acompanhando seu crânio.
- Você não tem
vergonha, não é, seu safado?!
- Do que você tá
falando? Larga disso cara. - E tentou tirar a arma de suas mãos, mas André
empurrou-o contra a parede e ameaçou atirar.
- Não posso
acreditar que você tenha feito isso - arfava entre cada frase. - Eu gostava
dela, cara. Eu gostava!
- Continuo não
entendendo. O que foi que eu fiz?
- Não sabe,
desgraçado! - Com um movimento brusco virou a arma e atirou a meio metro da
cabeça do seu amigo.
Paulo, todo
encolhido, começou a gemer e a chorar.
- Você me
enganou, seu filho da puta! - o gatilho da arma a meio caminho do próximo
disparo. - E com a minha própria noiva!?
Paulo parecia tão
espantado quanto André. Sabia que qualquer ato premeditado poderia fazê-lo
disparar novamente.
- O que é isso,
meu? Como você pode imaginar uma coisa dessas?
Sem desviar a
arma, e com muito sacrifício, conseguiu ligar a TV e o videocassete.
Paulo viu, estupefato,
a sua própria imagem na TV. Seus olhos oscilavam entre as cenas mostradas no
aparelho e o rosto suado do seu amigo.
Podia ver
claramente o corpo de Carla, a noiva de André, abraçando o seu, sobre a cama
daquela mesma casa. Em sua própria casa! Mistura de bocas, suor e gemidos, tudo
a cores. Cada gemido de prazer, um golpe no peito de André, que se preparava
para deixar explodir toda a sua loucura.
Paulo não
acreditava nas cenas que via. Tentou dizer algo, mas quando encarou o amigo,
viu em seus olhos o inevitável.
- Morra,
desgraçado!
Um, dois tiros.
Paulo caiu no chão, a camiseta agora molhada de vermelho. Gemidos ao fundo,
outro tiro destrói a TV momentos antes do orgasmo. Com a boca cheia de sangue,
Paulo balbucia:
- Eu nunca,
André... Nunca...
André descarregou
a arma no corpo caído no chão, como quem apaga suas próprias memórias. Seu
amigo não respirava mais. Enquanto a TV faiscava, suas pernas tremiam. Lágrimas
no rosto, sangue nas mãos, pegou a fita, que ainda rodava no videocassete, e se
foi.
Naquela noite
eles teriam uma festa. A despedida de solteiro de André. Garotas, bebidas e
amigos. Seu melhor amigo. André não conseguia mais pensar. Se fosse um boato,
uma carta, qualquer outra prova, tudo poderia ser discutido. Tudo poderia ser consequência
de terríveis enganos. Mas aquela fita de vídeo, que tremia sobre a poltrona do
carro, era um caminho de mão única. E sem saída.
Sua mão tremia ao
volante, mas ele não percebia, como não percebia a alta velocidade em que se
encontrava, como não percebia os carros que passavam. Para André não existia
mais nada, além da noite, dentro e fora do seu corpo.
Ficou toda a
madrugada sentado no seu sofá, esperando por nada. A polícia certamente o
procuraria quando o corpo de Paulo fosse encontrado, mas André não se
preocupava com isso. A fita, sobre a mesinha, encerrava sua vida. Pelo que
encontrou nela havia selado seu destino.
Minutos antes de
seu amigo chegar, André escolhia um filme aleatoriamente, quando percebeu que
havia uma fita dentro da câmera que Paulo deixava sobre o televisor.
Poderia ser uma
simples fita, entre tantas outras, mas ele sabia que seu colega era vídeo-amador,
além de que também conhecia a sua tara, que era gravar suas transas para assisti-las
posteriormente.
É claro que ele
via a as fitas e depois as apagava, mas não custava nada dar uma espiada. Foi
quando assistiu àquelas cenas pela primeira vez. A segunda foi na presença do
ator principal, aquele que considerava como irmão, e o havia traído como o pior
inimigo.
Agora, depois de
tudo, veria aquelas cenas de novo. Colocou calmamente a fita no video-cassete e
rebobinou-a.
Pressionou PLAY e
após alguns segundos, não viu nada. A gravação estava no início da fita, disso
tinha certeza, mas não exatamente no começo. Esperou um minuto, dois ou mais. A
imagem, o mesmo chuvisco de "fora do ar".
André teve um
pensamento aterrorizante. Imaginou se tudo poderia ser fruto de uma alucinação
doentia. Se a única razão pela qual matou seu melhor amigo existia apenas em
sua mente psicopata.
Desde que vira a
sua namorada ser violentada e morta na sua frente, André teve pesadelos
constantes. Pensou ter se recuperado mas essa não era a opinião de seus
médicos:"... ele é uma pessoa muito sensível. Como psicólogo não posso
avaliar quais foram os traumas que esse crime causou a ele. Talvez um
tratamento..."
Rodou a fita
duas, três vezes. Não poderia ter estragado toda a gravação sem que sobrassem
alguns vestígios. Nada. Experimentou em outro video-cassete mais dez vezes.
Começou
a chorar em frente à TV. Naquele
instante, lembrou de Carla e seus olhos de céu. Pegou a arma de cima da mesinha
e tentou se matar. Mas não havia mais balas: elas estavam todas no corpo do
amigo, que poderia ter falado a verdade, que poderia ser inocente.
Encolhido em
torno da arma, como em posição fetal; lágrimas escorriam em seu rosto, sob a
melodia das sirenes que se aproximavam.
Embora
interditada pela polícia, três noites após o crime, a casa de Paulo recebeu
visitas. Dois homens chegaram em um carro e o estacionaram do outro lado do
quarteirão. Sabiam do assassinato e de que o lugar era perigoso para pessoas
como eles.
- Espero que as
informações estejam corretas. Deu o maior trabalho chegar até aqui.- Comentou o
mais alto. Os dois vestiam macacões azul-marinho e levavam lanternas, além de
outros equipamentos.
- E pra ajudar o
cara ainda é assassinado. O que será que houve? - perguntou seu auxiliar,
enquanto usava uma chave-mestra para abrir a porta.
- Parece que o
nosso "portador" estava transando com a noiva do melhor amigo. E
este, quando descobriu, encheu-o de chumbo.
- Incrível que
matem por isso.
- Pois é.
A casa continuava
do mesmo jeito. A sala desarrumada, o televisor estilhaçado. Sangue ao lado do
desenho estilizado de um homem caído no chão.
- A coisa parece
que foi feia. - sibilou o mais alto, enquanto o examinava o local.
- Isso não nos
interessa. Procure logo o equipamento para que possamos ir embora.
- Acho que é esta
aqui. - Disse, apontando para a câmera de video sobre a TV.
Os dois
conferiram a marca, o número de série, abriram-na e, após uma vistoria,
trocaram-na por outra igual.
- Mais um
trabalho bem feito.
- É isso aí!
Após guardarem a
original numa bolsa, fecharam a casa e se foram.
Alguns
quilômetros depois, com a câmera nas mãos, o mais alto comentou:
- É incrível o que
esses contrabandistas fazem. Estão ficando melhores que a gente.
O baixinho
desviou sua atenção da estrada e observou a câmera por um instante: fita
digital, pequena, leve, uma típica filmadora portátil, moderna para a época.
- E ela ainda
funciona.
- Pois é. Fizeram
o circuito se adaptar perfeitamente e depois sobra pra gente o trabalho de
recuperar a peça.- reclamou, enquanto abria um pacote de biscoitos.
- Ora, é pra isso
que somos pagos - tomou um gole de café. - Além de que nós fomos os
responsáveis pelo extravio deste circuito.
- Escute... - o
mais alto pegou um biscoito. - Será que esse caso todo não modificou a história
padrão?
- Acho que não.
Não acredito que o receptor temporal escondido na câmera tenha causado qualquer
interferência no seu funcionamento que pudesse causar algum efeito na
realidade.
- Além do mais,
isso não é responsabilidade nossa. Correções na história é trabalho para o
grupo G7 da guarda temporal. Pra isso eles ganham mais.
- E o cara está
morto mesmo, não é?
- Pois é. - pegou
mais uma rosquinha - Tomara que o tempotransportador esteja pronto. Essa época
é um saco!
A noite estava
estrelada. A estrada deserta, um caminho sem fim.
Alexandre Custódio - 19/07/1993
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