quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Provas Concretas

Das profundezas de algum backup antigo, meu amigo Sony Santos conseguiu recuperar um conto de ficção-científica que escrevi em 1993, ou seja há quase 20 anos! Pensei em revisá-lo, mas achei mais interessante preservar a sua originalidade.

PROVAS CONCRETAS



     Paulo voltou da cidade trazendo duas garrafas de cerveja na mão, e com um solavanco na maçaneta abriu a porta do inferno.
     Diante de seus olhos André, seu melhor amigo, segurava uma arma entre as mãos. Tentando aparentar frieza, mantinha todo o corpo tenso, mas o suor no rosto e suas mãos trêmulas denunciavam seu estado.
     Por um instante, Paulo imaginou uma brincadeira sem graça, só por um instante, pois antes que pudesse se mexer, André falou:
     - Entra logo, canalha.
     Sua voz, que tentava impor segurança, na verdade era a prova mais clara de que André lutava para controlar suas emoções.
     Ele devia estar bêbado, drogado ou as duas coisas, pensou Paulo, enquanto a arma se movia acompanhando seu crânio.
     - Você não tem vergonha, não é, seu safado?!
     - Do que você tá falando? Larga disso cara. - E tentou tirar a arma de suas mãos, mas André empurrou-o contra a parede e ameaçou atirar.
     - Não posso acreditar que você tenha feito isso - arfava entre cada frase. - Eu gostava dela, cara. Eu gostava!
     - Continuo não entendendo. O que foi que eu fiz?
     - Não sabe, desgraçado! - Com um movimento brusco virou a arma e atirou a meio metro da cabeça do seu amigo.
     Paulo, todo encolhido, começou a gemer e a chorar.
     - Você me enganou, seu filho da puta! - o gatilho da arma a meio caminho do próximo disparo. - E com a minha própria noiva!?
     Paulo parecia tão espantado quanto André. Sabia que qualquer ato premeditado poderia fazê-lo disparar novamente.
     - O que é isso, meu? Como você pode imaginar uma coisa dessas?
     Sem desviar a arma, e com muito sacrifício, conseguiu ligar a TV e o videocassete.
     Paulo viu, estupefato, a sua própria imagem na TV. Seus olhos oscilavam entre as cenas mostradas no aparelho e o rosto suado do seu amigo.
     Podia ver claramente o corpo de Carla, a noiva de André, abraçando o seu, sobre a cama daquela mesma casa. Em sua própria casa! Mistura de bocas, suor e gemidos, tudo a cores. Cada gemido de prazer, um golpe no peito de André, que se preparava para deixar explodir toda a sua loucura.
     Paulo não acreditava nas cenas que via. Tentou dizer algo, mas quando encarou o amigo, viu em seus olhos o inevitável.
     - Morra, desgraçado!
     Um, dois tiros. Paulo caiu no chão, a camiseta agora molhada de vermelho. Gemidos ao fundo, outro tiro destrói a TV momentos antes do orgasmo. Com a boca cheia de sangue, Paulo balbucia:
     - Eu nunca, André... Nunca...
     André descarregou a arma no corpo caído no chão, como quem apaga suas próprias memórias. Seu amigo não respirava mais. Enquanto a TV faiscava, suas pernas tremiam. Lágrimas no rosto, sangue nas mãos, pegou a fita, que ainda rodava no videocassete, e se foi.

     Naquela noite eles teriam uma festa. A despedida de solteiro de André. Garotas, bebidas e amigos. Seu melhor amigo. André não conseguia mais pensar. Se fosse um boato, uma carta, qualquer outra prova, tudo poderia ser discutido. Tudo poderia ser consequência de terríveis enganos. Mas aquela fita de vídeo, que tremia sobre a poltrona do carro, era um caminho de mão única. E sem saída.
     Sua mão tremia ao volante, mas ele não percebia, como não percebia a alta velocidade em que se encontrava, como não percebia os carros que passavam. Para André não existia mais nada, além da noite, dentro e fora do seu corpo.

     Ficou toda a madrugada sentado no seu sofá, esperando por nada. A polícia certamente o procuraria quando o corpo de Paulo fosse encontrado, mas André não se preocupava com isso. A fita, sobre a mesinha, encerrava sua vida. Pelo que encontrou nela havia selado seu destino.
     Minutos antes de seu amigo chegar, André escolhia um filme aleatoriamente, quando percebeu que havia uma fita dentro da câmera que Paulo deixava sobre o televisor.
     Poderia ser uma simples fita, entre tantas outras, mas ele sabia que seu colega era vídeo-amador, além de que também conhecia a sua tara, que era gravar suas transas para assisti-las posteriormente.
     É claro que ele via a as fitas e depois as apagava, mas não custava nada dar uma espiada. Foi quando assistiu àquelas cenas pela primeira vez. A segunda foi na presença do ator principal, aquele que considerava como irmão, e o havia traído como o pior inimigo.
     Agora, depois de tudo, veria aquelas cenas de novo. Colocou calmamente a fita no video-cassete e rebobinou-a.
     Pressionou PLAY e após alguns segundos, não viu nada. A gravação estava no início da fita, disso tinha certeza, mas não exatamente no começo. Esperou um minuto, dois ou mais. A imagem, o mesmo chuvisco de "fora do ar".
     André teve um pensamento aterrorizante. Imaginou se tudo poderia ser fruto de uma alucinação doentia. Se a única razão pela qual matou seu melhor amigo existia apenas em sua mente psicopata.
     Desde que vira a sua namorada ser violentada e morta na sua frente, André teve pesadelos constantes. Pensou ter se recuperado mas essa não era a opinião de seus médicos:"... ele é uma pessoa muito sensível. Como psicólogo não posso avaliar quais foram os traumas que esse crime causou a ele. Talvez um tratamento..."
     Rodou a fita duas, três vezes. Não poderia ter estragado toda a gravação sem que sobrassem alguns vestígios. Nada. Experimentou em outro video-cassete mais dez vezes.
         Começou a  chorar em frente à TV. Naquele instante, lembrou de Carla e seus olhos de céu. Pegou a arma de cima da mesinha e tentou se matar. Mas não havia mais balas: elas estavam todas no corpo do amigo, que poderia ter falado a verdade, que poderia ser inocente.
     Encolhido em torno da arma, como em posição fetal; lágrimas escorriam em seu rosto, sob a melodia das sirenes que se aproximavam.

     Embora interditada pela polícia, três noites após o crime, a casa de Paulo recebeu visitas. Dois homens chegaram em um carro e o estacionaram do outro lado do quarteirão. Sabiam do assassinato e de que o lugar era perigoso para pessoas como eles.
     - Espero que as informações estejam corretas. Deu o maior trabalho chegar até aqui.- Comentou o mais alto. Os dois vestiam macacões azul-marinho e levavam lanternas, além de outros equipamentos.
     - E pra ajudar o cara ainda é assassinado. O que será que houve? - perguntou seu auxiliar, enquanto usava uma chave-mestra para abrir a porta.
     - Parece que o nosso "portador" estava transando com a noiva do melhor amigo. E este, quando descobriu, encheu-o de chumbo.
     - Incrível que matem por isso.
     - Pois é.
     A casa continuava do mesmo jeito. A sala desarrumada, o televisor estilhaçado. Sangue ao lado do desenho estilizado de um homem caído no chão.
     - A coisa parece que foi feia. - sibilou o mais alto, enquanto o examinava o local.
     - Isso não nos interessa. Procure logo o equipamento para que possamos ir embora.
     - Acho que é esta aqui. - Disse, apontando para a câmera de video sobre a TV.
     Os dois conferiram a marca, o número de série, abriram-na e, após uma vistoria, trocaram-na por outra igual.
     - Mais um trabalho bem feito.
     - É isso aí!
     Após guardarem a original numa bolsa, fecharam a casa e se foram.
     Alguns quilômetros depois, com a câmera nas mãos, o mais alto comentou:
     - É incrível o que esses contrabandistas fazem. Estão ficando melhores que a gente.
     O baixinho desviou sua atenção da estrada e observou a câmera por um instante: fita digital, pequena, leve, uma típica filmadora portátil, moderna para a época.
     - E ela ainda funciona.
     - Pois é. Fizeram o circuito se adaptar perfeitamente e depois sobra pra gente o trabalho de recuperar a peça.- reclamou, enquanto abria um pacote de biscoitos.
     - Ora, é pra isso que somos pagos - tomou um gole de café. - Além de que nós fomos os responsáveis pelo extravio deste circuito.
     - Escute... - o mais alto pegou um biscoito. - Será que esse caso todo não modificou a história padrão?
     - Acho que não. Não acredito que o receptor temporal escondido na câmera tenha causado qualquer interferência no seu funcionamento que pudesse causar algum efeito na realidade.
     - Além do mais, isso não é responsabilidade nossa. Correções na história é trabalho para o grupo G7 da guarda temporal. Pra isso eles ganham mais.
     - E o cara está morto mesmo, não é?
     - Pois é. - pegou mais uma rosquinha - Tomara que o tempotransportador esteja pronto. Essa época é um saco!
     A noite estava estrelada. A estrada deserta, um caminho sem fim.

Alexandre Custódio - 19/07/1993